sexta-feira, 25 de junho de 2010

A DOSE CERTA.

A Dose Certa (Fabio Terra)

Continuo procurando a dose certa
Entre a poeira do deserto
Onde nada pode me perturbar

Mato minha sede com a areia quente
Deixo ela escorrer pela garganta
Me sufocando com a sede do impávido astro solar.

Me arrasto feliz onde o vento castiga
Meus olhos secos, como minhas preces;
Que já me abandonaram desde a dose certa
E a lembrança de como foi amar.

Castigo o interrupto angulo da alma
Olhando pra baixo desorgulhosamente,
A sombra triste de quem um dia
Olhou pra cima e sonhou que podia voar.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O EMPREGO DA ALÊ.

O Emprego Da Alê (Fabio Terra)

Emprego, dinheiro e prazer
Qual desses três tem mais valor pra você,
Cabe ao seu coração desenhar e dizer
Aquele que mais importa, ou vale mais pra você

Tesão de gente nova é igual à bomba H.
A gente corre atrás de dinheiro, amor, emprego e prazer
Fim de semana, confusão e amigos, futuro e coisas do passado
pra esquecer

Escapamos dos colos inocentes
Preferindo os colos improcedentes onde bate o coração
Mas sempre o futuro, há de ser,mais legal
Mesmo que seja em uma oração.
No prazer, no dinheiro, no emprego, nos amigos e no tesão.

ASSIM QUE A TEMPESTADE PAROU.

Assim Que Tempestade Parou (Fabio Terra)

Assim que a tempestade parou
Você se sossegou apanhando amuletos da sorte,
E rezou para que Deus consertasse o seu erro.

Mas preso na teia da modernidade
Continuou esperando pela última picada sem dor
E correu para o matadouro a céu aberto

Sangue e leite correram juntos
Nas ruas barulhentas e estranhas
Sangre de Cristo lave a minha alma
Hóstia Consagrada, me façam engolir à força

Respire, respire bastardo
A fumaça é lenta e vermelha
Não quero mais esperar pelo jornal com minha foto,
Que saiu hoje!
E já é passado.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O CONVITE - 2ª E ÚLTIMA PARTE (Conto de Joaquim Terra)

O CONVITE - 2ª E ÚLTIMA PARTE

Bonifácio era um ousado e decidido jovem, filho de um pequeno agricultor da região de Franca que, no início do século, começou a empreender uma longa jornada de trabalho e de dedicação que acabou levando-o à fortuna. Começou negociando alguns bois e cavalos nas redondezas e aos poucos foi ampliando seus negócios e horizontes, negociando pequenos imóveis e propriedades rurais na região. Foram longos anos de esforços e dificuldades que muitas vezes quase o fizeram desistir de tudo. Mas o tino para os negócios, a determinação e o arrojo o fizeram ir em frente e no final o sucesso e a alegria venceram. E agora, já com mais de oitenta anos de idade, podia contemplar com serenidade e orgulho a obra da sua vida, representada pelo seu enorme patrimônio, pelos empreendimentos agropecuários e pelas centenas de imóveis em São Paulo e Ribeirão Preto que lhe rendiam considerável renda mensal de aluguel.

Durante a caminhada até aquele ponto da sua vida, muitos foram os percalços, mas também muitas foram as alegrias. Lembrava-se particularmente da felicidade, quando se casara ainda muito jovem com Izadora, a bela filha de um imigrante italiano A felicidade do nascimento de Alberto, o primeiro filho, quando os tempos ainda eram muito duros, quase foi apagada pelas complicações de parto da jovem esposa, que comprometeram definitivamente a sua saúde e a impediram de ter outros filhos. Alberto, o filho único, já tinha quase quinze anos quando a sua amada Izadora se foi, finalmente vencida pela saúde frágil. Essa foi seguramente a grande dor da sua vida. E foi quase insuportável. E a partir de então Bonifácio se afundou ainda mais no trabalho, afastando-se de qualquer tipo de diversão ou atividade social, buscando no esforço e na dedicação aos negócios o consolo pela perda da esposa amada. A companhia do filho foi fundamental para ajudá-lo a vencer os obstáculos, muitas vezes quase intransponíveis, que se apresentaram na sua caminhada. Alberto desde cedo demonstrou ter as mesmas qualidades do pai para o trabalho e os negócios. Tornou-se também um jovem e brilhante empreendedor, trabalhando firme ao seu lado na construção do que seria o sólido patrimônio futuro.

O casamento de Alberto com a linda Luciana e o nascimento dos netos trouxeram de novo um pouco de alegria à sua casa, e depois de mais de dez anos de solidão, o já então muito rico senhor Bonifácio, agora já beirando a casa dos cinqüenta anos, bastante incentivado pela extrovertida e alegre nora, começou a pensar em encontrar outra companheira. Ele já conhecia a rica e sofisticada Maria Augusta Fortes de Lima há vários anos, desde que fizera alguns negócios com seu finado marido, morto em um acidente com seu avião particular quando voltava das fazendas de Goiás. Já tinham se passado alguns anos desde a morte do marido quando ele a encontrou casualmente em um almoço na hípica de Orlândia. Em pouco tempo já eram mais do que bons amigos e logo o casamento foi anunciado, com os animados apoios e incentivos do filho e da nora. Apesar da contrariedade da família da noiva, a cerimônia de casamento foi discreta e reservada, apenas com a presença da família e de alguns amigos mais próximos. E logo depois do retorno do cruzeiro pelo Caribe a gravidez de Maria Augusta foi anunciada, para a imensa alegria do senhor Bonifácio.

Quando o caçula Leonardo nasceu, Bonifácio se deu conta de que, depois de todos aqueles anos, ele tinha novamente uma família. Durante muito tempo sua família tinha se resumido apenas a ele e ao filho. Depois vieram os dois netos, todos homens. Maria Augusta tinha um filho do primeiro casamento, ainda garoto, com oito anos, que naturalmente vivia com eles. E agora com a chegada do filho caçula ele já podia considerar que a família estava quase completa. Tinha esposa. Tinha filhos e netos. Todos homens. Mas para que a sua felicidade fosse completa faltava uma filha, ou uma neta, a quem ele pudesse dar o nome da sua saudosa e adorada Izadora, pensava em silêncio. A filha não veio, mas anos depois Leonardo deu-lhe a desejada primeira neta que, a pedido do avô, foi batizada com o nome de Izadora.

O bem sucedido senhor Bonifácio não era homem de esquecer as lições que a vida lhe ensinara e uma das principais era a gratidão e o reconhecimento para com os verdadeiros amigos. Aprendera também que apenas o trabalho e a dedicação muitas vezes não eram suficientes para superar um obstáculo maior e nunca se esquecera de uma ajuda providencial em um momento particularmente difícil da sua vida, que tinha sido fundamental para que ele conseguisse alcançar o sucesso. Poucos sabiam, mas um dos raros amigos que tinham acreditado no jovem casal quando eles ainda estavam começando a sua caminhada, e que o tinha ajudado quando eles precisaram de garantias e avais para conseguir levar adiante o seu principal empreendimento, tinha sido o então poderoso senhor Mariano Borges Diniz da Veiga. Nunca tinha se esquecido da presença constante de Zenaide ao lado do leito da sua Izadora e da tristeza sincera do casal no velório da esposa. E nunca se esqueceria também da solidariedade do amigo nos anos que se seguiram e também da sua própria tristeza quando soube dos tristes fatos que levaram o seu desventurado amigo à falência e ao suicídio, sem que ele nada pudesse fazer para ajudar. Por tudo isso ele fazia questão de que alguém da família do velho amigo estivesse presente no casamento da sua neta. Sabia da triste situação da antiga amiga Zenaide, o que infelizmente impediria a sua presença, mas insistiu no convite à filha Julietta. Os protestos gerais pelo insólito pedido, principalmente por parte da esposa, da nora e da própria neta foram ignorados. Ele não abriria mão da prerrogativa de, como avô, trazer uma convidada especial. A resistência geral só foi vencida com a intervenção de Alberto, que conhecia toda a história e exigiu que a vontade do pai fosse atendida. Foi assim que aquele inesperado convite foi devidamente subscrito e enviado.

Apesar da artrite e da idade avançada, a velha Marcolina tentou apressar os vagarosos passos para atender as insistentes batidas no portão. Pelo vigor e insistência das pancadas deveria ser algo importante. Assim que o pesado portão foi aberto, Maria Amélia, uma das poucas e fiéis amigas, entrou apressada. Atravessou decidida o mal cuidado jardim, subiu rapidamente escadaria da varanda que dava acesso ao salão principal e dirigindo-se para a atônita Julietta, em um tom autoritário e sem deixar margem para contestações, declarou.

- Você vai!

Não adiantaram as negativas e os protestos de Julietta, pois a amiga estava firmemente decidida. Avisou que ela e mais algumas outras amigas já tinham providenciado tudo. Roupas, jóias, carro e até motorista. Cabeleireiro, maquiagem e demais cuidados com roupas e estética também já estavam acertados. Não havia nada com que ela precisasse se preocupar. E tudo seria uma cortesia dela e das amigas. Elas faziam questão que ela fosse e pronto. Já fazia mais de uma semana que o convite tinha chegado. Nos primeiros dias Julietta o tinha conservado à vista, sobre o bufê da sala de jantar. Depois ele foi jogado displicentemente no fundo de uma gaveta, como que fazendo companhia à vontade e o interesse de Julietta em participar daquela festa. Mas depois da visita da amiga ele foi discretamente resgatado e novamente ocupou um lugar junto aos vários desgastados porta-retratos que testemunhavam alguns episódios de épocas mais felizes da sua vida.

Na noite do grande acontecimento as poucas amigas reunidas no grande salão testemunharam uma visão surpreendente quando uma deslumbrante Julietta desceu elegantemente a larga escadaria, sob os olhares surpresos dos presentes. Acompanhada por Maria Amélia dirigiu-se para o carro cedido pela solícita amiga, onde o motorista já a aguardava, e partiu ao encontro da mais memorável noite dos seus últimos anos.

O carro passou pelo portão da mansão e parou junto à escadaria especialmente decorada e iluminada para a ocasião. O motorista contornou o veículo e solenemente abriu a porta. Ignorando os olhares curiosos, Julietta desceu com desenvoltura e naturalidade. Foi recebida à porta pelo sorridente senhor Bonifácio e, altiva como uma verdadeira dama, foi conduzida pelo seu braço à pequena capela anexa à mansão onde se realizaria a reservada cerimônia de casamento. Logo após a breve cerimônia os convidados foram conduzidos ao salão principal onde seria servido o jantar. Aquele ambiente de fausto e luxo de forma nenhuma impressionava Julietta. O comportamento correto, o refinamento e a cultura adquiridos desde o berço nunca são esquecidos, por mais tempo que fiquem em desuso. E naquela noite Julietta deu a todos os presentes a mais viva demonstração de que coisas como finesse e elegância não são privilégios apenas dos que tem boa situação econômica e que são coisas que não podem simplesmente serem comprados por quem não os tem. E tudo foi maravilhoso naquela belíssima noite. O brilho e a alegria há muito perdidos, por alguns momentos voltaram aos olhos de uma feliz Julietta que a todos impressionava com sua simpatia e elegância. Não deixaram de ser admirados as suas maneiras seguras e elegantes à mesa e a sua desenvoltura e naturalidade com os segredos da etiqueta. E ao final do jantar, quando os convidados conversavam alegremente no saguão de entrada, onde foram servidos o café e os licores, foi ouvido um grito estridente que feriu os ouvidos de todos que estavam ali.

- Meu colar!

Todos os olhares convergiram imediatamente para a histérica jovem que demonstrava o mais puro desespero pela perda da jóia e que, com as duas mãos em volta do pescoço, continuava a gritar insistentemente.

- Meu colar! Meu colar!

Todos perceberam que o estado alcoólico da jovem estava um pouco acima no normal, mas não poderiam deixar de lhe dar especial atenção pelo inusitado da situação. Prontamente alguns solícitos presentes iniciaram uma breve busca ao redor, olhando mais cuidadosamente em baixo das mesas, cadeiras e tapetes. Mas nada foi encontrado. As tentativas de acalmar a transtornada jovem também não deram muito resultado. Ela não cansava de repetir que se tratava de uma jóia de família. Um caríssimo colar de brilhantes de valor incalculável que simplesmente tinha desaparecido. Logo a situação, que a princípio parecia ser apenas um incidente sem maiores conseqüências, começou a mudar. O ambiente festivo começava a ficar tenso à medida que o tempo passava e a jóia não era encontrada. O choro incessante da jovem contribuía para tornar a situação ainda mais tensa. Com o passar do tempo começou-se a perceber que o caro colar não seria encontrado com facilidade. E por isso, após algum tempo, o constrangido anfitrião se viu obrigado a orientar o pessoal da segurança para não deixar nenhum dos convidados se retirar até o esclarecimento do caso. E assim a noite, que deveria ser de luxo e elegância, ameaçava terminar de forma totalmente imprópria para um evento social de tal nível.

Não eram muitos os convidados e quase todos se conheciam. Na maioria eram familiares da noiva ou do noivo. Havia poucas exceções fora do círculo familiar. Apenas quatro ou cinco casais, antigos amigos da família, a inconsolável dona do colar desaparecido, amiga da noiva desde a infância, e Julietta, convidada especial do avô da noiva. No total eram pouco mais de quarenta pessoas. A eles somavam-se os garçons, que também tinham acesso ao salão onde a jóia tinha desaparecido. Havia também os serviçais da casa, os funcionários do buffet, o pessoal da segurança e os manobristas, mas esses não tinham tido contato mais próximo com os convidados durante o jantar. Com exceção do velho tabelião e do pároco, que tinham se retirado logo após ministrar a cerimônia nupcial, todos os participantes do jantar ainda estavam no local. Foi então formada às pressas uma pequena comissão para tentar solucionar a situação, constituída pelos pais da noiva, por Alberto e por um desolado senhor Bonifácio. As alternativas eram poucas e logo chegaram à conclusão que seria melhor contar com a compreensão e boa vontade dos presentes, promovendo uma investigação sigilosa e reservada ao invés de passar pelo supremo dissabor de deixar o caso transpirar para a esfera policial. Assim foram todos reunidos no salão principal e coube ao pai da noiva, visivelmente embaraçado diante daquela delicada situação, tentar encontrar as palavras certas para comunicar a todos que, em razão da necessidade de esclarecer um assunto tão desagradável com a maior brevidade, o que com certeza era de interesse geral, lamentava ter que solicitar que todos os presentes apresentassem voluntariamente os conteúdos de seus bolsos e das suas bolsas.

Foi nesse momento que se ouviu outro grito, não tão estridente e nem tão alto como o primeiro, mas igualmente marcado por um misto de pavor e preocupação.

- Não!

Todos os olhares se voltaram imediatamente para Julietta que, agarrando instintivamente a sua bolsa à frente do corpo, tinha sido a responsável pelo inesperado grito. O espanto foi geral e logo um clima adicional de surpresa e constrangimento se espalhou por todo o ambiente, já bastante carregado desde o início da situação. E a atitude de Julietta continuava inabalável. Ela continuava sentada imóvel, com a bolsa firmemente apertada junto ao peito, murmurando apenas.

- Não! Não!

Não demorou para que alguns poucos maledicentes já se apressassem a emitir julgamentos antecipados sobre a autoria do furto. E logo alguns convidados, em ostensiva atitude de demonstração da sua lisura e honestidade, se apressaram em mostrar os seus bolsos e bolsas, no que foram imediatamente seguidos por todos os outros. Apenas Julietta não cedia na firme determinação de impedir qualquer verificação do conteúdo da sua bolsa. E então o velho senhor Bonifácio entendeu que seria sua a responsabilidade de fazer algo a respeito. Aproximou-se de Julietta, sentou-se calmamente ao seu lado, apoiou a mão ternamente no seu ombro, demonstrando uma atitude paternal e compreensiva, e disse, em tom suave, mas que não deixava dúvidas quanto à sua firmeza

- Minha querida Julietta, nós a conhecemos e sabemos que você de forma alguma deve ser a culpada por esse triste episódio. Você é a minha convidada especial, mas é realmente necessário que nos dê a sua bolsa para podermos provar que você não tem nada a esconder. Lamento mas é preciso. – disse estendendo a mão à espera da bolsa.

Julietta nada respondeu, apenas levantou os olhos e fixou o severo senhor Bonifácio com uma expressão que traduzia a sua mais profunda desolação. Demonstrando toda a enorme determinação que aquele ato exigia dela, resignadamente estendeu a bolsa para ele. O ambiente era extremamente tenso e o silêncio contribuía para tornar ainda mais crítico aquele momento de extrema tensão. Sem conseguir disfarçar a curiosidade, todos os presentes se aproximaram da mesa, onde ainda estavam algumas das bolsas das senhoras presentes, aguardando com ansiedade o ato final. Quando a bolsa foi finalmente aberta ouviu-se imediatamente um murmúrio que pode ser definido entre surpresa e desapontamento. Diante da curiosidade geral, rolaram pela mesa apenas os canapés que Julietta furtivamente tinha guardado na bolsa para levar para a mãe.

Levantando-se com determinação da cadeira onde tinha ficado durante todo aquele pesadelo, Julietta se aproximou de cabeça erguida e com passos firmes e decididos e recolheu com firmeza a bolsa das mãos do constrangido senhor Bonifácio. Caminhando com altivez e elegância, encaminhou-se solenemente para a porta de saída, sem dirigir nenhum olhar aos presentes. Ela já passava pelo majestoso pórtico da saída quando ouviu a conhecida voz da jovem portadora da jóia.

- Achei! Achei!

Diante dos olhares de reprovação geral e alheia à gravidade da situação provocada pela sua inconseqüência, a estridente jovem contava com euforia como tinha achado o colar preso na parte interna do seu vestido. Provavelmente ele tinha deslizado por dentro do seu decote, dizia eufórica, sem perceber que com toda a sua efusividade apenas aumentava a consternação geral pelo drama pessoal que acabara de se desenrolar ali.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O CONVITE - 1ª PARTE - (Conto de Joaquim Terra)

O Convite (Joaquim Terra)

Não era muito comum o carteiro ter alguma entrega a fazer naquele endereço. Raramente havia alguma correspondência para entregar ali. Além das obrigatórias contas de água e de energia, que eram deixadas na caixa de correio, quase nunca havia qualquer outro tipo de correspondência destinado àquele endereço. Nem mesmo alguma cobrança, fatura de telefone ou correspondência bancária era entregue ali. Todos na cidade sabiam quem eram as moradoras daquele enorme e mal conservado casarão que vivia sempre fechado e silencioso. Conheciam também os acontecimentos trágicos que envolviam a vida das mulheres que ali viviam quase reclusas, o que aumentava um pouco mais a aura de mistério que cercava a velha casa e as suas moradoras. Até o veterano carteiro surpreendeu-se com o luxuoso envelope que acabara de entregar ali, principalmente porque, mesmo sem ferir a ética da sua nobre profissão, ele sabia exatamente qual era o seu teor. Afinal a cidade era pequena e ele mesmo tinha entregue alguns outros envelopes exatamente iguais àquele em alguns poucos endereços importantes da cidade. E além disso, todos no lugar sabiam que a família Mendonça de Alencar abriria a sua maravilhosa mansão para um magnífico jantar para comemorar o casamento de Izadora, a sua mimada filha única, e os poucos convites que estavam sendo enviados eram inconfundíveis. Assim aquele fato não poderia passar despercebido. Era o assunto do momento na cidade. Também não deixava de ser muito comentado entre a sociedade local, com uma certa ponta de inveja mal disfarçada, o fato de que daquela vez apenas alguns poucos escolhidos, rigorosamente selecionados entre a nata da sociedade, como se dizia no interior, tinham sido convidados pela família. Naturalmente viriam também alguns ricos e famosos de São Paulo e de algumas outras cidades. Afinal o noivo também era filho de uma tradicional, importante e riquíssima família de São Paulo. Filho de banqueiro, diziam alguns, tentando demonstrar conhecimento do assunto e alguma intimidade com os nobres da cidade.

Quando o casamento foi divulgado todos tinham a certeza de que mais uma vez os Mendonça de Alencar não deixariam passar a oportunidade de promover mais uma daquelas famosas festas que costumavam fazer na maravilhosa sede da sua fazenda, que ficava praticamente dentro da cidade. Afinal o local era famoso por ser palco freqüente de grandes e memoráveis eventos, com a presença de muitos convidados ilustres que congestionavam o aeroporto da fazenda com seus aviões particulares, transformavam os jardins da mansão em heliporto e o velho terreiro de café em estacionamento de carros de luxo. E assim muitos, principalmente muitas, ilustres figuras da sociedade local logo se apressaram em, disfarçadamente é claro, começar a providenciar as roupas e as jóias mais adequadas para o grande acontecimento. Porém logo se ficou sabendo que daquela vez, para grande desapontamento e decepção dos colunáveis locais, a família iria receber apenas um número reduzido de convidados muito especiais, rigorosamente escolhidos entre os amigos e parentes mais próximos, para um jantar reservado que com certeza iria ser incomparável em luxo e requinte. Sem demora começaram a circular as especulações sobre o sofisticado buffet contratado para o evento, incluindo os naturais exageros sobre os preços e as extravagâncias do cardápio e da decoração. Logo porém os comentários nos tradicionais pontos de fofocas mudaram de interesse e tentar descobrir quem tinha sido agraciado com o disputado convite passou a ser o principal assunto da cidade. Quando algum privilegiado convidado era identificado, logo os comentários entre os preteridos aumentavam de tom, tentando demonstrar um mal disfarçado desdém de falso desinteresse, porém mal conseguindo disfarçar uma ponta de despeito e inveja. Afinal todos se consideravam tão ilustres ou amigos da família da noiva como o feliz convidado, julgavam em silêncio. Mas, como os critérios para o convite eram prerrogativas exclusivas dos anfitriões, o jeito era se conformar.

Nelson, o carteiro, não era homem dado a inconfidências ou a comentários a respeito do seu trabalho diário. Já estava próximo da aposentadoria e os longos anos percorrendo diariamente as ruas da cidade, entregando envelopes e pacotes dos mais variados tipos e tamanhos, já se constituíam em pura rotina e assim pouca coisa havia a comentar a respeito das suas ocorrências diárias. Costumava chegar em casa no começo da tarde, depois de terminar as entregas que começavam sempre muito cedo e depois de almoçar sozinho o invariável prato feito que a mulher deixava sobre o fogão antes de ir para o trabalho, costumava dar uma esticada no sofá da sala para uma merecida soneca para recuperar-se do esforço das longas caminhadas que era obrigado a fazer para cumprir o seu ofício. No final da tarde costumava encontrar-se com os amigos no velho bar da esquina para algumas cervejinhas e as costumeiras partidas de dominó que se prolongavam até depois do jornal das oito, que era quase sempre assistido na velha televisão do bar. Quando chegava em casa para jantar, muitas vezes de novo sozinho, a esposa já estava concentrada na novela. Depois de jantar costumava sentar-se ao lado dela para acompanhar algum capítulo mais importante e às vezes aguardar o início do futebol. Assim raras eram as vezes que havia algum assunto em especial que pudesse provocar uma conversa mais demorada, mas como o capítulo da novela naquela noite girava em torno de uma grande festa de casamento, Nelson acabou comentando displicentemente o fato de ter entregado um dos disputados convites do jantar dos Mendonça de Alencar no velho casarão das senhoras solitárias. Foi um comentário inadvertido e despreocupado, totalmente isento de opinião e sem qualquer intenção de provocar alguma discussão sobre o assunto, mas sem querer ele acabava de disparar uma bomba de alto teor explosivo. Mariazinha, a esposa, uma fofoqueira de primeira linha, há muitos anos trabalhava como manicure no mais bem freqüentado salão de beleza local e assim, logo no dia seguinte ao despretensioso comentário do marido, a notícia já tinha circulado, se multiplicado e se espalhado por todos os pontos da cidade. E quando se soube que um daqueles raros e disputados convites para o grande jantar tinha sido entregue no misterioso casarão, o fato logo se transformou no assunto mais comentado nas rodas dos excluídos do maior acontecimento social do ano.

Quando o senhor Mariano Borges Diniz da Veiga falira no início da década de sessenta, toda a família ruíra junto. O seu grande patrimônio, herança de gerações de uma família de ricos produtores rurais do interior paulista, incluindo as terras e os imóveis, não foi suficiente para garantir o grande golpe que tinha sido a falência da instituição bancária onde estavam investidos todos os recursos da família. Em seguida, as quebras sucessivas de alguns parentes, dos quais ele era o principal fiador e avalista, terminaram por dizimar o restante da sua fortuna. Os credores tinham sido implacáveis. Primeiro foram os valores e os investimentos. Depois os imóveis. As jóias da família e as coleções de arte foram a seguir, em uma derradeira tentativa de saldar os compromissos pessoais assumidos, pois a sua formação extremamente conservadora, forjada nos tempos em que a garantia dos negócios era baseada na palavra e no chamado fio do bigode, nunca iria permitir que ele simplesmente ignorasse as suas obrigações. Por fim foram as baixelas de prata, os cristais, os tapetes e os ricos objetos que ornamentavam a magnífica mansão. Depois que quase tudo se fora, foi a vez da própria vida. Quando João Paulo, o único filho homem, o seu braço direito, o filho querido recém saído da faculdade de medicina e que era o seu maior orgulho, foi friamente assassinado durante uma discussão acalorada com um credor mais exaltado, os dissabores, constrangimentos e agora a tragédia acompanhada da mais profunda tristeza finalmente venceram. Em uma fria madrugada foi ouvido um estampido seco vindo do escritório da mansão. O cansado senhor Mariano tinha posto fim à sua conturbada vida. Foi encontrado com a cabeça tombada em cima da grande mesa de mogno do seu escritório particular, dentro de uma poça de sangue que manchava também os contratos vencidos, e as letras, promissórias, duplicatas e cobranças que documentavam inequivocamente os motivos das desventuras que o tinham levado àquele ato final. Deixou viúva a bela e elegante senhora Zenaide Rocha Diniz da Veiga e órfã a filha caçula, Julietta que, apesar de ainda adolescente, já participava intensamente da tragédia familiar que se desenrolava na sua própria casa. Graças à atuação competente do seu velho e fiel advogado conseguiram conservar como herança o grande casarão, já meio vazio e sem o brilho dos tempos anteriores. Conservaram também a cultura, elegância e refinamento adquiridos no berço e aprimorados pela educação esmerada e pelo convívio com o mundo ilustre em que viviam. Coisas que nenhum credor do mundo nunca iria conseguiria tirar delas.

Depois da tragédia aconteceu a grande mudança na vida das desventuradas mulheres daquela grande casa. A perda quase simultânea do filho e do marido foi um golpe muito maior do que a frágil senhora Zenaide conseguiu suportar. Foram meses de pranto e de isolamento trancada no seu quarto. O negro do luto passou a fazer parte do cotidiano daquela casa. Os poucos empregados que sobraram logo também se foram. Apenas Marcolina, a velha negra que acompanhava a família há mais tempo do conseguia lembrar-se, continuou na casa. Em pouco tempo os sinais de abandono podiam ser notados na limpeza e, principalmente, na despensa da grande casa. Algumas poucas e fiéis amigas, constrangidas pela situação, preocupadas em ajudar a minorar um pouco aquela triste condição a que tinham chegado as descendentes da família Diniz da Veiga, discretamente cediam algum material necessário para uma faxina e uma arrumação de urgência e vez ou outra providenciavam a reposição de alguns dos itens principais da despensa vazia.

Julietta era uma ingênua e inexperiente jovem de dezessete anos quando tudo isso aconteceu. Sua formação requintada e sua pouca experiência com as vassouras e as panelas, aliada ao seu total desconhecimento sobre dos assuntos financeiros mais elementares, todavia não foram obstáculo para impedi-la de tentar fazer alguma coisa a respeito da terrível situação em que se encontravam. O sangue dos empreendedores e das mulheres decididas da família, que no passado tinham sido responsáveis pela construção do império que agora se desmoronava, pareceu aflorar nela. Decidiu que não iria viver da caridade e da bondade das amigas da família. Sua primeira preocupação foi com a saúde da mãe. Depressão profunda, diagnosticou o médico da família. Aquilo significava a sua incapacidade total para dirigir o destino dela e da filha e então caberia a Julietta tomar todas as decisões necessárias. Descartou prontamente a sugestão de internação da mãe e assumiu para si a responsabilidade de cuidar dela enquanto fosse necessário. Tratou também com o fiel advogado da família dos assuntos relativos ao que restava da herança, garantindo a posse da casa e de alguns outros poucos bens, mas nada que pudesse garantir alguma remuneração regular. Ficou sabendo que o orgulhoso pai nunca tinha se preocupado em garantir nenhum tipo de aposentadoria ou pensão para a velhice, com certeza achava que aqueles eram assuntos pequenos demais para preocupar um homem como ele, dono de um grande patrimônio e que nunca imaginara que os seus negócios poderiam um dia acabar de uma hora para outra. Soube também que nenhum seguro de vida cobria casos de suicídio. Mas vasculhando as pilhas de documentos do falecido o atento e cuidadoso advogado tinha descoberto um benefício ao qual elas teriam direito pelo fato do senhor Mariano fazer parte dos colaboradores e mantenedores de um grande hospital beneficente. Esta condição de esposa de um dos beneméritos da instituição habilitava a mãe a receber uma pequena pensão vitalícia além de atendimento médico e hospitalar, incluindo os seus dependentes. O valor não era alto, mas pelo menos era garantido e seria suficiente para as despesas mensais de alimentação e a manutenção das duas, desde que houvesse apenas gastos essenciais e com muita economia.

Algum tempo depois da tragédia, Julietta até tentou ir à luta. Abandonou os estudos e pensou em iniciar alguma atividade produtiva. Talvez no campo das artes ou das traduções, que eram alguns assuntos que a interessavam e que julgava serem adequados a uma garota inexperiente de dezessete anos. Mas não demorou a ser vencida pela dura realidade. A incapacidade da mãe, que exigia a sua presença constante ao seu lado e as seqüelas psicológicas da tragédia que tinha mudado a sua vida ainda atuavam como elemento inibidor de atitudes mais decididas. O seu temperamento introvertido e a sua timidez também exerciam um forte bloqueio nas suas iniciativas. E ela foi protelando o inicio das suas atividades. E assim passaram-se os meses e os anos. Como a mãe nunca se recuperara totalmente do trauma e passava a maior parte do tempo calada e trancada em seu quarto, Julietta acabou acomodando-se também no papel de filha solteira responsável por cuidar da casa e da mãe. Viu a altivez se apagar do rosto da mãe e a beleza se apagar do seu. Não chegou a perceber quando as rugas aparecerem no seu rosto. Passou diretamente de adolescente a senhora, praticamente saltando as diversões da juventude e os encantos da vida de mulher adulta. Saía muito pouco de casa. Apenas o necessário para algumas compras na padaria ou no mercado, ou para ir à missa nas manhãs de domingo. Nunca mais tivera nenhum tipo de vida social. Tinha algumas raras amigas que costumavam aparecer às vezes no final da tarde para um chá e alguma conversa mais animada. Mas era só. Nunca tinha se relacionado com homem nenhum e nunca tinha conhecido os prazeres do sexo. Aos quarenta anos Julietta era uma mulher ainda bela, apesar das vicissitudes da sua triste vida, solitária, virgem e que se encaminhava resignadamente para uma velhice precoce sem nenhuma pretensão social ou amorosa. Por isso foi grande a sua surpresa quando naquela manhã a fiel Marcolina entregou-lhe aquele requintado envelope, devidamente endereçado a ela que tinha sido deixado na caixa do correio.
Julietta abriu cuidadosamente o envelope, sem danificar o belo lacre prateado que o fechava, desdobrou lentamente o caríssimo papel importado gravado em relevo e quando tomou conhecimento do seu conteúdo a sua surpresa foi ainda muito maior. Colocou o convite aberto sobre a mesa de jantar e por um longo tempo ficou contemplando-o, sem entender exatamente o motivo daquele fato inusitado. Afinal, durante todos aqueles anos ela nunca tinha sido convidada para nenhum acontecimento social de importância. Todos sabiam que ela não era afeita a festas ou a comemorações e que desde que a tragédia acontecera raramente ela tinha sido vista em alguma circunstância festiva. Nem mesmo nas quermesses da paróquia. Além de tudo isso, ela não se lembrava da sua família ter alguma ligação tão especial com qualquer membro da família Mendonça de Alencar. Lembrava-se vagamente de ter sido colega de escola da antipática Heleninha Rocha Aguiar, a mãe da noiva, que desde aquela época já namorava o jovem milionário Leonardo Mendonça de Alencar, o que a alçava à condição da garota mais invejada da turma e contribuía para torná-la ainda mais insuportável. Mas nunca tinham sido amigas. Forçando um pouco mais a memória lembrou-se de alguns flertes disfarçados com Leonardo antes de Heleninha tomar posse dele, mas tudo fora muito passageiro e superficial e com certeza não seria este um motivo para ele convidá-la para o casamento da filha depois de tantos anos. Qual seria então o motivo daquele inusitado convite? Só poderia ter sido engano de alguém responsável pela restrita lista de convidados.

Mesmo na sua quase reclusão voluntária, Julietta também já tinha ouvido alguns comentários sobre o grande acontecimento. Sabia também como eram os jantares como aquele para o qual estava sendo convidada, afinal ela tinha sido criada naquele ambiente. Sabia que não tinha mais roupas e jóias adequadas ou mesmo disposição para um evento de gala como aquele. Faltavam ainda quase vinte dias para o casamento mas ela não precisou de muito tempo para decidir que não iria. Não iria passar pelo constrangimento de comparecer a um evento onde poderia ter sido convidada por engano. Não seria motivo de chacota dos esnobes que, com certeza, a receberiam com desdém ou, pior, como uma curiosidade ou uma extravagância dos anfitriões para divertir os convidados. Não seria motivo de comentários e cochichos disfarçados pelos cantos. Além do que ela mal conhecia a noiva. Estava decidida e pronto. Mas naquela noite ela mal dormiu. Lembranças do seu distante passado de alegrias, quando acontecimentos como aquele eram comuns na vida da sua família, voltavam insistentemente à sua cabeça. Depois de tantos anos ela lembrava-se nitidamente do antigo prestígio da sua família, quando sempre eram os convidados principais de qualquer evento social. E mesmo calejada pelos anos de dificuldades e de tristeza que tinham endurecido a sua alma e tornado-a insensível às preocupações mundanas e sem muita importância como um jantar de gala, naquela noite ela não conseguiu controlar um discreto e sentido choro por tudo o que sua vida tinha se transformado.