segunda-feira, 7 de junho de 2010

O CONVITE - 2ª E ÚLTIMA PARTE (Conto de Joaquim Terra)

O CONVITE - 2ª E ÚLTIMA PARTE

Bonifácio era um ousado e decidido jovem, filho de um pequeno agricultor da região de Franca que, no início do século, começou a empreender uma longa jornada de trabalho e de dedicação que acabou levando-o à fortuna. Começou negociando alguns bois e cavalos nas redondezas e aos poucos foi ampliando seus negócios e horizontes, negociando pequenos imóveis e propriedades rurais na região. Foram longos anos de esforços e dificuldades que muitas vezes quase o fizeram desistir de tudo. Mas o tino para os negócios, a determinação e o arrojo o fizeram ir em frente e no final o sucesso e a alegria venceram. E agora, já com mais de oitenta anos de idade, podia contemplar com serenidade e orgulho a obra da sua vida, representada pelo seu enorme patrimônio, pelos empreendimentos agropecuários e pelas centenas de imóveis em São Paulo e Ribeirão Preto que lhe rendiam considerável renda mensal de aluguel.

Durante a caminhada até aquele ponto da sua vida, muitos foram os percalços, mas também muitas foram as alegrias. Lembrava-se particularmente da felicidade, quando se casara ainda muito jovem com Izadora, a bela filha de um imigrante italiano A felicidade do nascimento de Alberto, o primeiro filho, quando os tempos ainda eram muito duros, quase foi apagada pelas complicações de parto da jovem esposa, que comprometeram definitivamente a sua saúde e a impediram de ter outros filhos. Alberto, o filho único, já tinha quase quinze anos quando a sua amada Izadora se foi, finalmente vencida pela saúde frágil. Essa foi seguramente a grande dor da sua vida. E foi quase insuportável. E a partir de então Bonifácio se afundou ainda mais no trabalho, afastando-se de qualquer tipo de diversão ou atividade social, buscando no esforço e na dedicação aos negócios o consolo pela perda da esposa amada. A companhia do filho foi fundamental para ajudá-lo a vencer os obstáculos, muitas vezes quase intransponíveis, que se apresentaram na sua caminhada. Alberto desde cedo demonstrou ter as mesmas qualidades do pai para o trabalho e os negócios. Tornou-se também um jovem e brilhante empreendedor, trabalhando firme ao seu lado na construção do que seria o sólido patrimônio futuro.

O casamento de Alberto com a linda Luciana e o nascimento dos netos trouxeram de novo um pouco de alegria à sua casa, e depois de mais de dez anos de solidão, o já então muito rico senhor Bonifácio, agora já beirando a casa dos cinqüenta anos, bastante incentivado pela extrovertida e alegre nora, começou a pensar em encontrar outra companheira. Ele já conhecia a rica e sofisticada Maria Augusta Fortes de Lima há vários anos, desde que fizera alguns negócios com seu finado marido, morto em um acidente com seu avião particular quando voltava das fazendas de Goiás. Já tinham se passado alguns anos desde a morte do marido quando ele a encontrou casualmente em um almoço na hípica de Orlândia. Em pouco tempo já eram mais do que bons amigos e logo o casamento foi anunciado, com os animados apoios e incentivos do filho e da nora. Apesar da contrariedade da família da noiva, a cerimônia de casamento foi discreta e reservada, apenas com a presença da família e de alguns amigos mais próximos. E logo depois do retorno do cruzeiro pelo Caribe a gravidez de Maria Augusta foi anunciada, para a imensa alegria do senhor Bonifácio.

Quando o caçula Leonardo nasceu, Bonifácio se deu conta de que, depois de todos aqueles anos, ele tinha novamente uma família. Durante muito tempo sua família tinha se resumido apenas a ele e ao filho. Depois vieram os dois netos, todos homens. Maria Augusta tinha um filho do primeiro casamento, ainda garoto, com oito anos, que naturalmente vivia com eles. E agora com a chegada do filho caçula ele já podia considerar que a família estava quase completa. Tinha esposa. Tinha filhos e netos. Todos homens. Mas para que a sua felicidade fosse completa faltava uma filha, ou uma neta, a quem ele pudesse dar o nome da sua saudosa e adorada Izadora, pensava em silêncio. A filha não veio, mas anos depois Leonardo deu-lhe a desejada primeira neta que, a pedido do avô, foi batizada com o nome de Izadora.

O bem sucedido senhor Bonifácio não era homem de esquecer as lições que a vida lhe ensinara e uma das principais era a gratidão e o reconhecimento para com os verdadeiros amigos. Aprendera também que apenas o trabalho e a dedicação muitas vezes não eram suficientes para superar um obstáculo maior e nunca se esquecera de uma ajuda providencial em um momento particularmente difícil da sua vida, que tinha sido fundamental para que ele conseguisse alcançar o sucesso. Poucos sabiam, mas um dos raros amigos que tinham acreditado no jovem casal quando eles ainda estavam começando a sua caminhada, e que o tinha ajudado quando eles precisaram de garantias e avais para conseguir levar adiante o seu principal empreendimento, tinha sido o então poderoso senhor Mariano Borges Diniz da Veiga. Nunca tinha se esquecido da presença constante de Zenaide ao lado do leito da sua Izadora e da tristeza sincera do casal no velório da esposa. E nunca se esqueceria também da solidariedade do amigo nos anos que se seguiram e também da sua própria tristeza quando soube dos tristes fatos que levaram o seu desventurado amigo à falência e ao suicídio, sem que ele nada pudesse fazer para ajudar. Por tudo isso ele fazia questão de que alguém da família do velho amigo estivesse presente no casamento da sua neta. Sabia da triste situação da antiga amiga Zenaide, o que infelizmente impediria a sua presença, mas insistiu no convite à filha Julietta. Os protestos gerais pelo insólito pedido, principalmente por parte da esposa, da nora e da própria neta foram ignorados. Ele não abriria mão da prerrogativa de, como avô, trazer uma convidada especial. A resistência geral só foi vencida com a intervenção de Alberto, que conhecia toda a história e exigiu que a vontade do pai fosse atendida. Foi assim que aquele inesperado convite foi devidamente subscrito e enviado.

Apesar da artrite e da idade avançada, a velha Marcolina tentou apressar os vagarosos passos para atender as insistentes batidas no portão. Pelo vigor e insistência das pancadas deveria ser algo importante. Assim que o pesado portão foi aberto, Maria Amélia, uma das poucas e fiéis amigas, entrou apressada. Atravessou decidida o mal cuidado jardim, subiu rapidamente escadaria da varanda que dava acesso ao salão principal e dirigindo-se para a atônita Julietta, em um tom autoritário e sem deixar margem para contestações, declarou.

- Você vai!

Não adiantaram as negativas e os protestos de Julietta, pois a amiga estava firmemente decidida. Avisou que ela e mais algumas outras amigas já tinham providenciado tudo. Roupas, jóias, carro e até motorista. Cabeleireiro, maquiagem e demais cuidados com roupas e estética também já estavam acertados. Não havia nada com que ela precisasse se preocupar. E tudo seria uma cortesia dela e das amigas. Elas faziam questão que ela fosse e pronto. Já fazia mais de uma semana que o convite tinha chegado. Nos primeiros dias Julietta o tinha conservado à vista, sobre o bufê da sala de jantar. Depois ele foi jogado displicentemente no fundo de uma gaveta, como que fazendo companhia à vontade e o interesse de Julietta em participar daquela festa. Mas depois da visita da amiga ele foi discretamente resgatado e novamente ocupou um lugar junto aos vários desgastados porta-retratos que testemunhavam alguns episódios de épocas mais felizes da sua vida.

Na noite do grande acontecimento as poucas amigas reunidas no grande salão testemunharam uma visão surpreendente quando uma deslumbrante Julietta desceu elegantemente a larga escadaria, sob os olhares surpresos dos presentes. Acompanhada por Maria Amélia dirigiu-se para o carro cedido pela solícita amiga, onde o motorista já a aguardava, e partiu ao encontro da mais memorável noite dos seus últimos anos.

O carro passou pelo portão da mansão e parou junto à escadaria especialmente decorada e iluminada para a ocasião. O motorista contornou o veículo e solenemente abriu a porta. Ignorando os olhares curiosos, Julietta desceu com desenvoltura e naturalidade. Foi recebida à porta pelo sorridente senhor Bonifácio e, altiva como uma verdadeira dama, foi conduzida pelo seu braço à pequena capela anexa à mansão onde se realizaria a reservada cerimônia de casamento. Logo após a breve cerimônia os convidados foram conduzidos ao salão principal onde seria servido o jantar. Aquele ambiente de fausto e luxo de forma nenhuma impressionava Julietta. O comportamento correto, o refinamento e a cultura adquiridos desde o berço nunca são esquecidos, por mais tempo que fiquem em desuso. E naquela noite Julietta deu a todos os presentes a mais viva demonstração de que coisas como finesse e elegância não são privilégios apenas dos que tem boa situação econômica e que são coisas que não podem simplesmente serem comprados por quem não os tem. E tudo foi maravilhoso naquela belíssima noite. O brilho e a alegria há muito perdidos, por alguns momentos voltaram aos olhos de uma feliz Julietta que a todos impressionava com sua simpatia e elegância. Não deixaram de ser admirados as suas maneiras seguras e elegantes à mesa e a sua desenvoltura e naturalidade com os segredos da etiqueta. E ao final do jantar, quando os convidados conversavam alegremente no saguão de entrada, onde foram servidos o café e os licores, foi ouvido um grito estridente que feriu os ouvidos de todos que estavam ali.

- Meu colar!

Todos os olhares convergiram imediatamente para a histérica jovem que demonstrava o mais puro desespero pela perda da jóia e que, com as duas mãos em volta do pescoço, continuava a gritar insistentemente.

- Meu colar! Meu colar!

Todos perceberam que o estado alcoólico da jovem estava um pouco acima no normal, mas não poderiam deixar de lhe dar especial atenção pelo inusitado da situação. Prontamente alguns solícitos presentes iniciaram uma breve busca ao redor, olhando mais cuidadosamente em baixo das mesas, cadeiras e tapetes. Mas nada foi encontrado. As tentativas de acalmar a transtornada jovem também não deram muito resultado. Ela não cansava de repetir que se tratava de uma jóia de família. Um caríssimo colar de brilhantes de valor incalculável que simplesmente tinha desaparecido. Logo a situação, que a princípio parecia ser apenas um incidente sem maiores conseqüências, começou a mudar. O ambiente festivo começava a ficar tenso à medida que o tempo passava e a jóia não era encontrada. O choro incessante da jovem contribuía para tornar a situação ainda mais tensa. Com o passar do tempo começou-se a perceber que o caro colar não seria encontrado com facilidade. E por isso, após algum tempo, o constrangido anfitrião se viu obrigado a orientar o pessoal da segurança para não deixar nenhum dos convidados se retirar até o esclarecimento do caso. E assim a noite, que deveria ser de luxo e elegância, ameaçava terminar de forma totalmente imprópria para um evento social de tal nível.

Não eram muitos os convidados e quase todos se conheciam. Na maioria eram familiares da noiva ou do noivo. Havia poucas exceções fora do círculo familiar. Apenas quatro ou cinco casais, antigos amigos da família, a inconsolável dona do colar desaparecido, amiga da noiva desde a infância, e Julietta, convidada especial do avô da noiva. No total eram pouco mais de quarenta pessoas. A eles somavam-se os garçons, que também tinham acesso ao salão onde a jóia tinha desaparecido. Havia também os serviçais da casa, os funcionários do buffet, o pessoal da segurança e os manobristas, mas esses não tinham tido contato mais próximo com os convidados durante o jantar. Com exceção do velho tabelião e do pároco, que tinham se retirado logo após ministrar a cerimônia nupcial, todos os participantes do jantar ainda estavam no local. Foi então formada às pressas uma pequena comissão para tentar solucionar a situação, constituída pelos pais da noiva, por Alberto e por um desolado senhor Bonifácio. As alternativas eram poucas e logo chegaram à conclusão que seria melhor contar com a compreensão e boa vontade dos presentes, promovendo uma investigação sigilosa e reservada ao invés de passar pelo supremo dissabor de deixar o caso transpirar para a esfera policial. Assim foram todos reunidos no salão principal e coube ao pai da noiva, visivelmente embaraçado diante daquela delicada situação, tentar encontrar as palavras certas para comunicar a todos que, em razão da necessidade de esclarecer um assunto tão desagradável com a maior brevidade, o que com certeza era de interesse geral, lamentava ter que solicitar que todos os presentes apresentassem voluntariamente os conteúdos de seus bolsos e das suas bolsas.

Foi nesse momento que se ouviu outro grito, não tão estridente e nem tão alto como o primeiro, mas igualmente marcado por um misto de pavor e preocupação.

- Não!

Todos os olhares se voltaram imediatamente para Julietta que, agarrando instintivamente a sua bolsa à frente do corpo, tinha sido a responsável pelo inesperado grito. O espanto foi geral e logo um clima adicional de surpresa e constrangimento se espalhou por todo o ambiente, já bastante carregado desde o início da situação. E a atitude de Julietta continuava inabalável. Ela continuava sentada imóvel, com a bolsa firmemente apertada junto ao peito, murmurando apenas.

- Não! Não!

Não demorou para que alguns poucos maledicentes já se apressassem a emitir julgamentos antecipados sobre a autoria do furto. E logo alguns convidados, em ostensiva atitude de demonstração da sua lisura e honestidade, se apressaram em mostrar os seus bolsos e bolsas, no que foram imediatamente seguidos por todos os outros. Apenas Julietta não cedia na firme determinação de impedir qualquer verificação do conteúdo da sua bolsa. E então o velho senhor Bonifácio entendeu que seria sua a responsabilidade de fazer algo a respeito. Aproximou-se de Julietta, sentou-se calmamente ao seu lado, apoiou a mão ternamente no seu ombro, demonstrando uma atitude paternal e compreensiva, e disse, em tom suave, mas que não deixava dúvidas quanto à sua firmeza

- Minha querida Julietta, nós a conhecemos e sabemos que você de forma alguma deve ser a culpada por esse triste episódio. Você é a minha convidada especial, mas é realmente necessário que nos dê a sua bolsa para podermos provar que você não tem nada a esconder. Lamento mas é preciso. – disse estendendo a mão à espera da bolsa.

Julietta nada respondeu, apenas levantou os olhos e fixou o severo senhor Bonifácio com uma expressão que traduzia a sua mais profunda desolação. Demonstrando toda a enorme determinação que aquele ato exigia dela, resignadamente estendeu a bolsa para ele. O ambiente era extremamente tenso e o silêncio contribuía para tornar ainda mais crítico aquele momento de extrema tensão. Sem conseguir disfarçar a curiosidade, todos os presentes se aproximaram da mesa, onde ainda estavam algumas das bolsas das senhoras presentes, aguardando com ansiedade o ato final. Quando a bolsa foi finalmente aberta ouviu-se imediatamente um murmúrio que pode ser definido entre surpresa e desapontamento. Diante da curiosidade geral, rolaram pela mesa apenas os canapés que Julietta furtivamente tinha guardado na bolsa para levar para a mãe.

Levantando-se com determinação da cadeira onde tinha ficado durante todo aquele pesadelo, Julietta se aproximou de cabeça erguida e com passos firmes e decididos e recolheu com firmeza a bolsa das mãos do constrangido senhor Bonifácio. Caminhando com altivez e elegância, encaminhou-se solenemente para a porta de saída, sem dirigir nenhum olhar aos presentes. Ela já passava pelo majestoso pórtico da saída quando ouviu a conhecida voz da jovem portadora da jóia.

- Achei! Achei!

Diante dos olhares de reprovação geral e alheia à gravidade da situação provocada pela sua inconseqüência, a estridente jovem contava com euforia como tinha achado o colar preso na parte interna do seu vestido. Provavelmente ele tinha deslizado por dentro do seu decote, dizia eufórica, sem perceber que com toda a sua efusividade apenas aumentava a consternação geral pelo drama pessoal que acabara de se desenrolar ali.

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